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Foto: Bárbara Camurça

Tempo para a proteção

Ítala Lobato

Por Bárbara Camurça

A professora municipal que enfrenta o medo e se desdobra para conciliar a rotina corrida com a coordenação de projetos voltados à proteção da infância

Foto: Bárbara Camurça

Uma rotina incansável, um coração disponível e cheio de esperança. Ítala Lobato, 43, é professora municipal, esposa, mãe e coordenadora dos projetos Associação Amigos em Missão – AMI – e Flores do Sertão, que atendem mais de 270 crianças – 70  no bairro Vicente Pinzón, em Fortaleza, e 200 em Tejuçuoca, no interior do Estado. 

 

Ela chegou ao nosso encontro um pouco atrasada, cheia de sacolas nos braços, pedindo desculpas. Não foi fácil conseguir agenda para este encontro. Afinal, os compromissos começam cedinho e vão até tarde da noite. 

 

Ítala não abre mão de dedicar cuidados ao filho

Foto: Bárbara Camurça

AGENDA
Segunda a sexta-feira

7h30 - Aulas para uma turma de crianças de 8 anos pela manhã.

12h30 - Almoço com a família.

 

14h00 - AMI – compras, documentos, limpeza, atendimento aos pais e crianças, organização das atividades.

 

18h20 - Aulas na EMEIF Professora Belarmina Campos para uma turma de jovens e adultos.

22h00 - Pendências de casa.

Sábados

5h00 - Tejuçuoca.

Tempo livre ela não tem, não! Mas mesmo na correria se mostra sensível ao momento de parar só para ouvir, para perceber. Enquanto eu ajustava o equipamento, ela fechou os olhos e ficou em silêncio. Depois começou a cantar baixinho uma canção que eu não identifiquei. Perguntei: “Está tudo bem?”. Ela afirmou que sim, mas não tive certeza. Num momento intimista, que o ambiente parecia permitir, resolvemos fazer uma oração para que a sua história inspirasse a jornada de outras pessoas.

 

A gente sabe que a gente está no meio do risco. Estar aqui é enfrentar os medos

Foto: Bárbara Camurça

“Esse sentimento me move a estar em um local de acolhimento, que traz segurança para a criança. Eu acho que esse é o sentimento principal: pensar que a criança precisa ter foco para o futuro dela e precisa estar protegida”

Quando tudo começou...

 

E pensar que ainda menina descobriu-se professora! Depois de muita insistência pedindo a uma vizinha da rua “Ei, consegue para eu ensinar?”, teve a sua chance. A professora iria sair por um tempo para dar à luz e Ítala seguiu, aos 12 anos, como voluntária para substituí-la na sala de aula. Era uma escolinha da comunidade, que já nem existe, mas que proporcionou a experiência de cuidar de uma turma de alfabetização. “Até que eles se alfabetizaram”, conta, gargalhando.

 

A infância foi tranquila... Alegre! Com a presença constante dos pais. Mas talvez essa preocupação com a proteção da criança tenha surgido, mesmo inconscientemente, por causa de uma experiência perturbadora: uma tentativa de estupro. O que poderia ser o fim dos seus sonhos, a despertou para a necessidade de proteger um grupo tão vulnerável. “Esse sentimento me move a estar em um local de acolhimento, que traz segurança para a criança. Eu acho que esse é o sentimento principal: pensar que a criança precisa ter foco para o futuro dela e precisa estar protegida”.

Proteção de crianças

 

Essas experiências impulsionaram o início dos projetos. Há 14 anos, ao perceber a necessidade das crianças do sertão, Ítala e um grupo de amigos decidiram viajar nas férias para a casa do pai dela, para contar histórias, encenar peças teatrais e alegrar as crianças. Mas concluíram que as férias era um período curto e precisavam fazer algo mais efetivo. “Era como se a gente desse o pirulito na boca e depois tomasse, né? Porque a gente ia embora.” Nascia ali, primeiro no coração, a AMI.

 

 A Associação Amigos em Missão foi estruturada no Vicente Pinzón e hoje assiste crianças de 6 a 14 anos, moradoras das localidades As Placas, Joana D’Arc e morro Santa Terezinha. A única exigência para ter aulas de balé, muay thai, reforço escolar, pífano e violão, é estar matriculado na escola pública. O bairro foi escolhido porque o grupo se comoveu com a quantidade de crianças que desciam o morro para fazer malabarismo no sinal, além da evasão escolar muito expressiva na área. Dos vários amigos que idealizaram, permaneceram no projeto: ela, Cristiane, hoje captadora de recursos e Rodrigo, professor de música.

 

 As dificuldades foram muitas, ainda são. No começo houve uma resistência dos vendedores de droga da área e o projeto foi apedrejado, mas agora eles já “deixam passar as tias da AMI”, disse Cristiane. Em meio à burocracia, compras no centro da cidade, atendimento aos familiares das crianças, preocupação com o lanche e contas do fim do mês, Ítala é grata e elogiosa à equipe de voluntários. “A gente tem uma coisa muito preciosa aqui: as pessoas que trabalham. O grupo é muito eficiente, competente. Na hora que eu não estiver, sei que as coisas vão continuar funcionando”, fala, sorrindo.

 

Ela está inserida em muitos contextos difíceis: a escola pública, o projeto em Fortaleza e a iniciativa em Tejuçuoca. Já se deparou com casos extremos: crianças com sequelas físicas e emocionais por abusos sexuais, abandono, falta de estrutura familiar, fome e sujeira. Ao ser questionada sobre como, sinceramente, ela conseguia prosseguir, afirma sem titubear que a fonte da sua força é Deus. Diz que seu “momento de oração” é contínuo: quando chega, quando sai, no ônibus, nos intervalos das aulas, e afirma ter tido muitos referenciais bons, dentre eles o próprio pai. 

 

Sobre os seus medos, admite: “Tem um monte, mas até esses medos a gente tem que entregar a Deus, porque ele é tudo em nós. Nada é pela força do nosso braço, não! Quando a gente pensa que nosso braço pode alguma coisa... (suspiro). Os nossos medos também devem ser ditos. A gente sabe que a gente está no meio do risco. Estar aqui é enfrentar os medos”. 

Foto: Bárbara Camurça

A AMI proporciona um ambiente de acolhimento e proteção às crianças do projeto

No começo houve uma resistência dos vendedores de droga da área e o projeto foi apedrejado, mas agora eles já deixam passar as tias da AMI

Foto: Bárbara Camurça

Crianças compartilham suas experiências através de desenhos

Uma viagem

Era preciso conhecer o projeto e segui viagem com Ítala e a família. Saímos de Fortaleza no sábado cedinho. Depois de viajarmos mais de 100 km, não houve descanso. Uma companhia de teatro tinha sido agendada para o dia e as crianças estavam agitadas. Na entrada, recebeu abraços calorosos e cumprimentos alegres. Instruiu os professores, saudou todas as crianças e, logo depois da apresentação, atendeu, numa salinha pequena, mães e crianças mais velhas para a renovação de cadastro. Essa renovação é feita duas vezes ao ano, por exigência da Compassion, uma ONG internacional que financia projetos voltados a auxiliar crianças em situações de risco em países como Haiti, Peru, Etiópia e Bangladesh. Sob o seu cuidado, os pequenos tiraram fotos, fizeram cartinhas para enviar aos padrinhos e receberam cartas e presentes que chegaram. 

 

O almoço foi breve e Ítala seguiu para a igreja, resolveu mais papelada, banhou o filho e saiu com uma lista de crianças para visitar. À tardinha, ao voltar, o olhar era meio perdido, perplexo. Diante do resultado dos encontros, desabafou: “Eu preciso dar um jeito de estar mais aqui... Não sei como vou fazer.” O levantamento daquele dia envolvia uma criança com problemas cardiológicos que precisava vir à Fortaleza para uma consulta, mas a única responsável era a mãe, grávida, que não podia deixar em Tejuçuoca os outros irmãos do menino. Em outra casa, o abandono de uma menina com o avô: a mãe foi embora com outro homem. Assim, seguiu pensativa o resto da agenda do dia. Depois do evento à noite nos preparamos para voltar. Todos muito cansados, mas dormir na cidade não era uma opção. Na manhã de domingo haveria a festa das mães da AMI e era imprescindível a sua presença para ajudar na organização.

 

Diante dessa rotina, pode ter o compromisso que for, ela não abre mão de almoçar com o filho João, conversar, mesmo que no trajeto da escola para casa, e tirar um tempo só para brincar com ele. O marido também é uma parte elementar em todas as atividades. Acompanha, apoia e cuida do João enquanto ela cuida de outras centenas de crianças, que assim como ele, precisam de atenção, afeto e proteção. “A cada dia eu vejo que não é só estar o tempo todo com a criança, é a qualidade do tempo que você dá. Desenvolver confiança e amizade com o filho é fundamental pra que ele abra o coração e as coisas sejam ditas.”

Foto: Bárbara Camurça

Os padrinhos acompanham o desenvolvimento das crianças por meio de cartas

Foto: Bárbara Camurça

A Compassion assiste os alunos do projeto até a fase adulta

Foto: Bárbara Camurça

Esta é uma sala improvisada para educar as crianças

Quem Somos

Sou Bárbara Camurça, 22 anos. Uma peregrina. Enquanto caminho, observo. Se me toca, paro, apuro, questiono, relato. Apaixonada por fotografia, cheiro de livro novo e café. Jornalista em formação pela Fa7 e pela vida também. Dizem que sou boa ouvinte e veem isso como virtude. A verdade é que não ouço por altruísmo, mas pelo sentimento sincero de que tenho muito a aprender com cada encontro.

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